10-07-2020, 12:28 PM
Posto trecho de uma entrevista envolvendo dois caras de currículo acadêmico fenomenal:
Jorge Forbes – O que você costuma chamar de “novo humanismo”?
Luc Ferry – Tivemos dois grandes momentos do humanismo: o do século 18-19, herdeiro das luzes, é o humanismo do direito e da razão, que levou ao pensamento republicano, à democracia e à ideia de tornar justa a vida dos seres humanos. O segundo humanismo é justamente o que chamei de “a revolução do amor”. É a invenção do casamento por amor. A passagem do casamento arranjado ao casamento escolhido. Só depois da Segunda Guerra Mundial o casamento por amor vai se tornar a regra.
Jorge Forbes – Como o casamento por amor muda a humanidade?
Luc Ferry – Os historiadores nos ensinam que foi o capitalismo moderno que inventou o casamento por amor. Evidentemente, sem querer. Simultaneamente ao surgimento do assalariado, deu-se o nascimento do indivíduo. Com a autonomia material que o salário proporciona, as pessoas decidem casar-se, e não mais serem casadas. É a história do século 19. Antes os motivos do casamento eram a linhagem, a economia e a biologia. A classe operária começa a se casar por amor bem antes da classe burguesa, por razões patrimoniais evidentes. Os operários não tinham nada a perder. E quando inventam o casamento por amor na Europa, quase que imediatamente inventa-se o divórcio. Foi na França do final do século 19, em 1884.
Jorge Forbes – E como essa herança impacta as famílias do século 21?
Luc Ferry – A revolução do amor, por mais íntimo que seja o sentimento no qual se apoia, transforma todos os domínios da atividade humana. E não subverte nossa existência apenas na vida privada, mas na esfera pública. No fundo há três idades da família. Primeiro, a aristocrática: sem amor e sem divórcio. Segundo, a burguesa, de 1850 a 1950. Não havia divórcios na família burguesa. O presidente da República não se divorciava. As pessoas se amavam seis dias e se aporrinhavam 60 anos. Homens enganavam mulheres dia e noite. O bordel era, evidentemente, uma instituição que permitia que a família sobrevivesse. E, finalmente, depois de 1960, vem a terceira idade da família, que é a atual. Hoje, 50% dos casamentos terminam em divórcio em toda a Europa. É o preço da liberdade do amor. A liberdade e o amor são bem mais difíceis que a tradição.
Jorge Forbes – O divórcio e o amor-paixão…?
Luc Ferry – Se não havia amor nos casamentos, não precisava haver divórcio. Ao fundamentarmos o casamento no amor-paixão, é evidente que se fundamenta a instituição casamento em algo frágil e variável. Para um casal atual, o fato de não mais se amarem torna-se motivo de divórcio. Na Idade Média, o desamor não constituía motivo para tal. Foi somente após a Segunda Guerra Mundial, na Europa, depois de 1945, e olhe lá!…
Jorge Forbes – E o amor em si? Amor é o relato do amor? Se não houvesse relato, haveria amor?
Luc Ferry – O amor é provavelmente tão velho quanto a humanidade. Não é simplesmente o relato do amor, mesmo que para um psicanalista ele possa se apresentar, por vezes, assim. O que você recebe no seu consultório são pessoas que vão contar suas desventuras, seus fracassos, seus medos em relação ao amor. O amor-paixão é difícil. É o sentimento que nos faz sair de nós mesmos antes que possamos falar dele.
***Jorge Forbes - médico psiquiatra e psicanalista brasileiro, especialista em Jacques Lacan, foi um dos introdutores do ensino dele no país.
***Luc Ferry - filósofo francês, professor de filosofia e político.
