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Ingressou: Jun 2015
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Não é somente pelo gênero literário ‘romance’ que se faz possível ampliar horizonte de consciência, assimilar elementos de experiência humana ou perceber faces da realidade nua e crua, além de estimular, claro, a própria imaginação e poder criativo.
Os contos, também, são excelentes para este mister. Vejam, por exemplo, algumas peças de um dos grandes contistas brasileiros e ponderem se não há neles vários elementos que discutimos aqui e percebemos em nossas próprias vidas.
A “DIVORCIADA” – Humberto de Campos
Desde que tomou, aos quatro anos, conhecimento do mundo e da vida, A Madaleninha indagara de Dona Judith:
— Mamãe, onde é que está o papai?
As primeiras respostas da moça foram uma série de sorrisos, de desculpas ingênuas, para enganar a pequenita. Por essas informações, o pai estava de viagem, andando de cidade em cidade, das quais volveria, um dia, carregado de presentes e brinquedos, para as duas. E quando a menina reclamava, pelo menos, um retrato do viajante misterioso, Dona Judith fechava os olhos, numa evocação, como quem pretende reconstituir, um por um, os traços de uma fisionomia esquecida.
Com dez anos, já, a Madaleninha pedia explicações mais claras, à pobre mãe abandonada. E esta avançou um ponto:
— Minha filha, teu pai não voltará mais!
— Nunca mais, mamãe?
— Nunca mais!
— Ele morreu, então?
— Não; não morreu, não.
E apertando a menina de encontro ao peito:
— Tua mãe, filhinha, é divorciada, isto é, uma senhora separada do marido.
A pequena arregalou muito os olhos, e não falou mais no assunto. Aos quatorze anos, voltou a pedir esclarecimentos:
— Mamãezinha, a senhora é separada do papai... Não é?
— Sou, minha filha.
— Diga-me, então uma coisa: quanto tempo a senhora viveu com ele?
Dona Judith baixou os olhos, para poder esconder duas lágrimas. E foi sem poder escondê-las, que desvendou o seu horrível segredo, rebentando em soluços:
— Pouco tempo, minha filha...
E caindo no ombro da menina boquiaberta:
— Uma noite, num trem...
CONTO MORAL – Humberto de Campos
Era uma vez uma pequena tão gentil, tão gentil, como não é possível explicar.
Para dar uma idéia do que era ela, deve-se dizer que a sua mãe, a propósito de tudo ou sem propósito nenhum, lhe dava de vez em quando um beliscão. Ao contrário, porém, do que faziam as outras meninas, esta não ia, jamais, queixar-se à polícia.
O seu consolo era reclamar:
— Quando eu for grande, e tiver uma filha, hei de dar-lhe, também, uma porção de beliscões!
O tempo ia, porém, passando, e nada da menina ficar moça, para casar-se, ter uma filha, e dar, nesta, os beliscões que a mãe lhe dava.
Um dia, enfim, a menina sentiu-se mulher. Com a resolução de cumprir a promessa feita durante tantos anos, a moça de agora casou-se, por uma semana ou duas, com o açougueiro do canto.
Ao fim de nove meses nasceu-lhe um filho homem.
Desapontada, e disposta a cumprir sua palavra, a rapariga casou-se com o leiteiro, depois com o caixeiro, e ainda com um "chauffeur" e, finalmente, com um empregado do café. E cada um desses lhe deu um filho varão.
— Quem sabe se não é porque eu sempre me tenho, casado com homens, que os filhos nascem homens? — pensou.
E experimentou casar-se com a telefonista.
Desta vez, porém, não lhe nasceu nada.
Há, mesmo, neste mundo, muita gente sem sorte...
A SANTA – Humberto de Campos
Com aqueles olhos doloridos e agonizantes, que dormiam e acordavam de minuto em minuto na pálida alcova daquele rosto moreno, Dona Casemira tornara-se o culto da graciosa cidade nortista. Cabelo partido ao meio, e repuxado sobre o crânio como o de Rosita Rodrigo, toda ela era simplicidade elegante, singeleza tenteadora, um misto, enfim, de candura e de pecado. Casada aos dezoito, fora-lhe o marido para o Amazonas dois anos depois, não voltara mais. E estava já com vinte e quatro, quando os homens, que não eram seu marido, começaram a rondar-lhe a casa modesta, transformando-a, de refúgio da miséria, em secreto manancial de fartura.
Em breve, toda a gente em Fortaleza sabia da mudança operada, repentinamente, na vida da Casemira. Às olheiras pela renúncia haviam sucedido as olheiras pela abundância. E eram essas olheiras, exatamente, que enganavam frei Manoel da Pacificação, superior dos Carmelitas, o qual não se cansava de dizer, com a piedade no coração:
— É uma santa, a Dona Casemira; uma verdadeira santa!
Por três anos as beatas ouviram, sem protesto, aquele elogio do frade. Até que, um dia, à sua repetição, à porta do confessionário, uma resolveu protestar:
— Santa, não, frei Manoel! Isso é até um sacrilégio! Toda a gente sabe que Casemira vive hoje, ora com um, ora com outro!
Frei Manoel era, porém, desses homens teimosos, que nunca se deixam converter.
— Pois, é por isso mesmo que eu a chamo santa, filha! — exclamou, par não dar as mãos à palmatória.
— Diga-me uma coisa: a pia dágua-benta é santa?
— É, sim, senhor, frei Manoel. — confirmou a devota.
E o frade, vitorioso:
— E a pia não é um lugar onde todos metem o dedo?
"Trata de saborear a vida; e fica sabendo, que a pior filosofia é a do choramingas que se deita à margem do rio para o fim de lastimar o curso incessante das águas. O ofício delas é não parar nunca; acomoda-te com a lei, e trata de aproveitá-la." - Trecho de Memórias Póstumas de Brás Cubas
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