21-10-2021, 09:16 AM
(Esta publicação foi modificada pela última vez: 21-10-2021, 09:59 AM por Héracles.)
Eu ando lendo muita coisa ultimamente, muita mesmo ... parece-me (com certo grau de certeza) que a aflição e o sofrimento da monotonia do cotidiano são pouco aplacados na leitura, nos dando um horizonte aonde vislumbramos, ao menos no pensamento e imaginação, uma vida de liberdade vivida com profundidade em todos os sentidos, dessa forma oferecendo a sensação de que a vida seja de certa forma suportável. Aliás, esse é o objetivo final da arte ... mas enfim, essas considerações são discussão para outro momento. Terminei recentemente este:
Resolvi recomendar esse livro, porque eu acho que ele é bastante pertinente para a maioria do público que acessa com regularidade o fórum.
Provavelmente correndo o risco de ser redundante, primeiramente devo comentar o quanto os personagens de Dostoiévski são familiares a nós mesmos. É impressionante como em todas as profundas reflexões postas no enredo, sempre temos a inquietante sensação de familiaridade com aquele ou esse comportamento sórdido. O personagem principal é um funcionário mediano do estado, que vive praticamente como um recluso no subsolo, ou seja, em sua residência. O livro é, em suma, um diário que ele escreve para si mesmo, que provavelmente será lido por alguém após o seu desaparecimento, mas não seria o seu objetivo que realmente fosse lido. Ele começa explicando que voluntariamente se recusa a ter qualquer tipo de afetividade ou ligação com as pessoas do seu convívio pessoal, e o motivo principal é que ele se considera com elevada certeza e soberba, uma alma muito mais elevada, esclarecida, de demasiada profundidade e nobreza, e com intelecto muito superior ao da grande maioria da aristocracia russa. Na sua visão, praticamente todos são uns imbecis estúpidos desprovidos de moral e ética ou capacidade de autorreflexão, movidos apenas por satisfação sensorial. Justamente por essas características eu resolvi recomendar esse livro.
Surpreendentemente, este é o mesmo comportamento da grande maioria do fórum, que tem uma megalomania totalmente desprovida de nexo sobre o próprio valor moral ou intelectual. Na verdade, essa é uma característica muito comum do ser humano introvertido e que tem ou teve uma forte inclinação cristã, conduta esta que foi sacada já a tantos anos por Dostoiévski. Aqui é importante observar que, logicamente, eu me enxerguei em diversos momentos e aspectos com o que acontecia ali.
Mas o curioso é que ao longo das intermináveis auto-argumentações do funcionário, ele mesmo admite que na realidade é um covarde, um covarde vil e sem caráter talvez até mais ignominioso que todos os outros a sua volta aos quais ele critica e considera grosseiro e de alma rasa. Faz algumas observações sobre o quanto tem inveja do homem de ação, entrando naquele velho ponto cansativamente debatido aqui sobre como o "conhecimento traz sofrimento" e em como esse "sofrimento" vira um júbilo vicioso para o ser "pensante" que sofre, indo também a observações sobre como "vivemos rodeados por uma maioria de idiotas". É bastante interessante e ao mesmo tempo perturbador, as declarações de que o homem covarde (como ele) sente um prazer sórdido em sentir sofrimento, prazer em se sentir desprezado. De como esse sentimento "contraditório" é o guia para a sua atitude frente a vida. Ele busca objetivamente ser desprezado pelas suas apreciações reclusas, justamente para poder se sentir superior no seu mundo imaginário. Acredito com confiança que isso diz muita coisa para muitas pessoas por aqui.
Minha interpretação pessoal é que o autor se utilizou de uma perspicaz ironia ao criar esse personagem, descrevendo-o, de uma forma indireta, como uma síntese fiel a tendencia da época sobre a descaracterização do homem numa espécie de boneco social desprovido de individualidade genuína, extremamente polarizado na racionalização e tendo uma visão altamente elevada de si próprio. A irritante constância dos verborrágicos devaneios do funcionário acerca do motivo que ele suspeita que os outros tenham tomado em relação a si próprio, cria um ambiente altamente desconfortável, fazendo com que nós próprios reflitamos sobre o quanto criamos juízos de valor alicerçados na nossa covardia, baixeza de caráter e sadomasoquismo psicológico. Impossível não fazer o link com a nossa sociedade contemporânea, e imaginar sobre o que será que o Dostoiévski escreveria sobre o século XXI?
Enxergo o fórum, de muitas maneiras como esse subsolo. Muitas pessoas menosprezadas na vida real vem aqui pagar de intelectualmente e moralmente te superiores, simplesmente porque o resto do mundo não é como eles acreditam que deveria ser, ou porque nem todas as pessoas dão importância as mesmas crenças que as suas. Veem o seu juízo de valor, ou seja, as suas projeções postas nos comportamentos alheios, o que faz que o próprio ego se proteja e se coloque numa espécia de púlpito onde todo o resto é visto de cima. A frustração pessoal vira virtude. E eu escrevo isso porque me vi muitos anos fazendo exatamente isso (talvez ainda faça em certo sentido), inclusive muitos textos meus mais antigos refletem esse fato. Admitir a falha é, na maioria das vezes doloroso, e um ato de coragem e amadurecimento psíquico que poucos estão dispostos a fazer. Aliás essa é mais uma das argumentação do enredo
Definitivamente, esse é tipo de livro que vale a lida por todo tipo de gente... se você se identificou, mesmo que seja minimante com alguma coisa escrita aqui, não perca tempo.
Spoiler Revelar
Resolvi recomendar esse livro, porque eu acho que ele é bastante pertinente para a maioria do público que acessa com regularidade o fórum.
Provavelmente correndo o risco de ser redundante, primeiramente devo comentar o quanto os personagens de Dostoiévski são familiares a nós mesmos. É impressionante como em todas as profundas reflexões postas no enredo, sempre temos a inquietante sensação de familiaridade com aquele ou esse comportamento sórdido. O personagem principal é um funcionário mediano do estado, que vive praticamente como um recluso no subsolo, ou seja, em sua residência. O livro é, em suma, um diário que ele escreve para si mesmo, que provavelmente será lido por alguém após o seu desaparecimento, mas não seria o seu objetivo que realmente fosse lido. Ele começa explicando que voluntariamente se recusa a ter qualquer tipo de afetividade ou ligação com as pessoas do seu convívio pessoal, e o motivo principal é que ele se considera com elevada certeza e soberba, uma alma muito mais elevada, esclarecida, de demasiada profundidade e nobreza, e com intelecto muito superior ao da grande maioria da aristocracia russa. Na sua visão, praticamente todos são uns imbecis estúpidos desprovidos de moral e ética ou capacidade de autorreflexão, movidos apenas por satisfação sensorial. Justamente por essas características eu resolvi recomendar esse livro.
Surpreendentemente, este é o mesmo comportamento da grande maioria do fórum, que tem uma megalomania totalmente desprovida de nexo sobre o próprio valor moral ou intelectual. Na verdade, essa é uma característica muito comum do ser humano introvertido e que tem ou teve uma forte inclinação cristã, conduta esta que foi sacada já a tantos anos por Dostoiévski. Aqui é importante observar que, logicamente, eu me enxerguei em diversos momentos e aspectos com o que acontecia ali.
Mas o curioso é que ao longo das intermináveis auto-argumentações do funcionário, ele mesmo admite que na realidade é um covarde, um covarde vil e sem caráter talvez até mais ignominioso que todos os outros a sua volta aos quais ele critica e considera grosseiro e de alma rasa. Faz algumas observações sobre o quanto tem inveja do homem de ação, entrando naquele velho ponto cansativamente debatido aqui sobre como o "conhecimento traz sofrimento" e em como esse "sofrimento" vira um júbilo vicioso para o ser "pensante" que sofre, indo também a observações sobre como "vivemos rodeados por uma maioria de idiotas". É bastante interessante e ao mesmo tempo perturbador, as declarações de que o homem covarde (como ele) sente um prazer sórdido em sentir sofrimento, prazer em se sentir desprezado. De como esse sentimento "contraditório" é o guia para a sua atitude frente a vida. Ele busca objetivamente ser desprezado pelas suas apreciações reclusas, justamente para poder se sentir superior no seu mundo imaginário. Acredito com confiança que isso diz muita coisa para muitas pessoas por aqui.
Minha interpretação pessoal é que o autor se utilizou de uma perspicaz ironia ao criar esse personagem, descrevendo-o, de uma forma indireta, como uma síntese fiel a tendencia da época sobre a descaracterização do homem numa espécie de boneco social desprovido de individualidade genuína, extremamente polarizado na racionalização e tendo uma visão altamente elevada de si próprio. A irritante constância dos verborrágicos devaneios do funcionário acerca do motivo que ele suspeita que os outros tenham tomado em relação a si próprio, cria um ambiente altamente desconfortável, fazendo com que nós próprios reflitamos sobre o quanto criamos juízos de valor alicerçados na nossa covardia, baixeza de caráter e sadomasoquismo psicológico. Impossível não fazer o link com a nossa sociedade contemporânea, e imaginar sobre o que será que o Dostoiévski escreveria sobre o século XXI?
Enxergo o fórum, de muitas maneiras como esse subsolo. Muitas pessoas menosprezadas na vida real vem aqui pagar de intelectualmente e moralmente te superiores, simplesmente porque o resto do mundo não é como eles acreditam que deveria ser, ou porque nem todas as pessoas dão importância as mesmas crenças que as suas. Veem o seu juízo de valor, ou seja, as suas projeções postas nos comportamentos alheios, o que faz que o próprio ego se proteja e se coloque numa espécia de púlpito onde todo o resto é visto de cima. A frustração pessoal vira virtude. E eu escrevo isso porque me vi muitos anos fazendo exatamente isso (talvez ainda faça em certo sentido), inclusive muitos textos meus mais antigos refletem esse fato. Admitir a falha é, na maioria das vezes doloroso, e um ato de coragem e amadurecimento psíquico que poucos estão dispostos a fazer. Aliás essa é mais uma das argumentação do enredo
Definitivamente, esse é tipo de livro que vale a lida por todo tipo de gente... se você se identificou, mesmo que seja minimante com alguma coisa escrita aqui, não perca tempo.
"Compreendi o tormento cruciante do sobrevivente da guerra, a sensação de traição e covardia experimentada por aqueles que ainda se agarram à vida quando seus camaradas já dela se soltaram." (Xeones para o rei Xerxes)