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Mário Ferreira dos Santos
#1
Mário Ferreira dos Santos
Postado por ThothEnki no fórum Mundo Realista em 15/12/2012

“Quando a obra de um único autor é mais rica e poderosa que a cultura inteira do seu país, das duas uma: ou o país consente em aprender com ele ou recusa o presente dos céus e inflige a si próprio o merecido castigo pelo pecado da soberba, condenando-se ao definhamento intelectual e a todo o cortejo de misérias morais que necessariamente o acompanham.”

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Infelizmente quanto à obra de Mário Ferreira dos Santos foi a segunda opção que prevaleceu, sendo então sua história escondida, suas obras não divulgadas. Tudo, ao que consta, graças à derrota de Caio Prado Júnior, ‘intelectual’ do Partido Comunista Brasileiro, que sofreu um vexame histórico ao debater em público com Mário e ter seu discurso comunista corrigido e refutado arduamente. Contribuindo a isso tem-se o não interesse de publicação por parte de editoras e Mário vende seus livros então de porta em porta. Porém a leitura é difícil, revisões eram necessárias às obras e isso torna-se também fator limitante ao sucesso do autor.

Dentre suas obras “Filosofia Concreta” traz uma sequência de afirmações auto-evidentes e conclusões bem fundadas nelas – uma ambiciosa e bem sucedida tentativa de descrever a realidade como deve-se concebê-la para que afirmações científicas façam sentido.

Mário analisa o que foi investigado por filósofos ao longo de vinte e quatro séculos, encontrando o ponto de convergência, construindo e sintetizando os métodos de demonstração para fundamentá-los sob todos os ângulos concebíveis.

Criador da filosofia concreta, define-a como um conhecimento circular que conexiona tudo o que pertença ao objeto estudado, desde sua definição geral até sua inserção em postos maiores e seu posto na ordem dos conhecimentos.

“O que está em jogo não é o futuro de Mário Ferreira dos Santos: é o futuro de um país que a ele não deu nada, nem mesmo um reconhecimento da boca para fora, mas ao qual ele pode dar uma nova vida no espírito.”

Fonte: Olavo de Carvalho

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Quando a obra de um único autor é mais rica e poderosa que a cultura inteira do seu país, das duas uma: ou o país consente em aprender com ele ou recusa o presente dos céus e inflige a si próprio o merecido castigo pelo pecado da soberba, condenando-se ao definhamento intelectual e a todo o cortejo de misérias morais que necessariamente o acompanham.

Mário Ferreira ocupa no Brasil uma posição similar à de Giambattista Vico na cultura napolitana do século XVIII ou de Gottfried von Leibniz na Alemanha da mesma época: um gênio universal perdido num ambiente provinciano incapaz não só de compreendê-lo, mas de enxergá-lo. Leibniz ainda teve o recurso de escrever em francês e latim, abrindo assim algum diálogo com interlocutores estrangeiros. Mário está mais próximo de Vico no seu isolamento absoluto, que faz dele uma espécie de monstro. Quem, num ambiente intelectual prisioneiro do imediatismo mais mesquinho e do materialismo mais deprimente – materialismo compreendido nem mesmo como postura filosófica, mas como vício de só crer no que tem impacto corporal –, poderia suspeitar que, num escritório modesto da Vila Olimpia, na verdade uma passagem repleta de livros entre a cozinha e a sala de visitas, um desconhecido discutia em pé de igualdade com os grandes filósofos de todas as épocas, demolia com meticulosidade cruel as escolas de pensamento mais em moda e sobre seus escombros erigia um novo padrão de inteligibilidade universal?

Os problemas que Mário enfrentou foram os mais altos e complexos da filosofia, mas, por isso mesmo, estão tão acima das cogitações banais da nossa intelectualidade, que esta não poderia defrontar-se com ele sem passar por uma metanóia, uma conversão do espírito, a descoberta de uma dimensão ignorada e infinita. Foi talvez a premonição inconsciente do terror e do espanto – do thambos aristotélico – que a impeliu a fugir dessa experiência, buscando abrigo nas suas miudezas usuais e definhando pouco a pouco, até chegar à nulidade completa; decerto o maior fenômeno de auto-aniquilação intelectual já transcorrido em tempo tão breve em qualquer época ou país. A desproporção entre o nosso filósofo e os seus contemporâneos – muito superiores, no entanto, à atual geração – mede-se por um episódio transcorrido num centro anarquista, em data que agora me escapa, quando se defrontaram, num debate, Mário e o então mais eminente intelectual oficial do Partido Comunista Brasileiro, Caio Prado Júnior. Caio falou primeiro, respondendo desde o ponto de vista marxista à questão proposta como Leitmotiv do debate. Quando ele terminou, Mário se ergueu e disse mais ou menos o seguinte:

– Lamento informar, mas o ponto de vista marxista sobre os tópicos escolhidos não é o que você expôs. Vou portanto refazer a sua conferência antes de fazer a minha.

E assim fez. Muito apreciado no grupo anarquista, não por ser integralmente um anarquista ele próprio, mas por defender as idéias econômicas de Pierre-Joseph Proudhon, Mário jamais foi perdoado pelos comunistas por esse vexame imposto a uma vaca sagrada do Partidão. O fato pode ter contribuído em algo para o muro de silêncio que cercou a obra do filósofo desde a sua morte. O Partido Comunista sempre se arrogou a autoridade de tirar de circulação os autores que o incomodavam, usando para isso a rede de seus agentes colocados em altos postos na mídia, no mundo editorial e no sistema de ensino. A lista dos condenados ao ostracismo é grande e notável. Mas, no caso de Mário, não creio que tenha sido esse o fator decisivo. O Brasil preferiu ignorar o filósofo simplesmente porque não sabia do que ele estava falando. Essa confissão coletiva de inépcia tem, decerto, o atenuante de que as obras do filósofo, publicadas por ele mesmo e vendidas de porta em porta com um sucesso que contrastava pateticamente com a ausência completa de menções a respeito na mídia cultural, vinham impressas com tantas omissões, frases truncadas e erros gerais de revisão, que sua leitura se tornava um verdadeiro suplício até para os estudiosos mais interessados – o que, decerto, explica mas não justifica. A desproporção evidenciada naquele episódio torna-se ainda mais eloqüente porque o marxismo era o centro dominante ou único dos interesses intelectuais de Caio Prado Júnior, ao passo que, no horizonte infinitamente mais vasto dos campos de estudo de Mário Ferreira, era apenas um detalhe ao qual ele não poderia ter dedicado senão alguns meses de atenção: nesses meses, aprendera mais do que o especialista que dedicara ao assunto uma vida inteira.

A mente de Mário Ferreira era tão formidavelmente organizada que para ele era a coisa mais fácil localizar imediatamente no conjunto da ordem intelectual qualquer conhecimento novo que lhe chegasse desde área estranha e desconhecida. Numa outra conferência, interrogado por um mineralogista de profissão que desejava saber como aplicar ao seu campo especializado as técnicas lógicas que Mário desenvolvera, o filósofo respondeu que nada sabia de mineralogia mas que, por dedução desde os fundamentos gerais da ciência, os princípios da mineralogia só poderiam ser tais e quais – e enunciou quatorze. O profissional reconheceu que, desses, só conhecia oito.

A biografia do filósofo é repleta dessas demonstrações de força, que assustavam a platéia, mas que para ele não significavam nada. Quem ouve as gravações das suas aulas, registradas já na voz cambaleante do homem afetado pela grave doença cardíaca que haveria de matá-lo aos 65 anos, não pode deixar de reparar na modéstia tocante com que o maior sábio já havido em terras lusófonas se dirigia, com educação e paciência mais que paternais, mesmo às platéias mais despreparadas e toscas. Nessas gravações, pouco se nota dos hiatos e incongruências gramaticais próprios da expressão oral, quase inevitáveis num país onde a distância entre a fala e a escrita se amplia dia após dia. As frases vêm completas, acabadas, numa seqüência hierárquica admirável, pronunciadas em recto tono, como num ditado.

Quando me refiro à organização mental, não estou falando só de uma habilidade pessoal do filósofo, mas da marca mais característica de sua obra escrita. Se, num primeiro momento, essa obra dá a impressão de um caos inabarcável, de um desastre editorial completo, o exame mais demorado acaba revelando nela, como demonstrei na introdução à Sabedoria das Leis Eternas[1], um plano de excepcional clareza e integridade, realizado quase sem falhas ao longo dos 52 volumes da sua construção monumental, a Enciclopédia das Ciências Filosóficas.

Além dos maus cuidados editoriais – um pecado que o próprio autor reconhecia e que explicava, com justeza, pela falta de tempo –, outro fator que torna difícil ao leitor perceber a ordem por trás do caos aparente provém de uma causa biográfica. A obra escrita de Mário reflete três etapas distintas no seu desenvolvimento intelectual, das quais a primeira não deixa prever em nada as duas subseqüentes, e a terceira, comparada à segunda, é um salto tão formidável na escala dos graus de abstração que aí parecemos nos defrontar já não com um filósofo em luta com suas incertezas e sim com um profeta-legislador a enunciar leis reveladas ante as quais a capacidade humana de discutir tem de ceder à autoridade da evidência universal.

A biografia interior de Mário Ferreira é realmente um mistério, tão grandes foram os dois milagres intelectuais que a moldaram. O primeiro transformou um mero ensaísta e divulgador cultural em filósofo na acepção mais técnica e rigorosa do termo, um dominador completo das questões debatidas ao longo de dois milênios, especialmente nos campos da lógica e da dialética. O segundo fez dele o único – repito, o único – filósofo moderno que suporta uma comparação direta com Platão e Aristóteles. Este segundo milagre anuncia-se ao longo de toda a segunda fase da obra, numa seqüência de enigmas e tensões que exigiam, de certo modo, explodir numa tempestade de evidências e, escapando ao jogo dialético, convidar a inteligência a uma atitude de êxtase contemplativo. Mas o primeiro milagre, sobrevindo ao filósofo no seu quadragésimo-terceiro ano de idade, não tem nada, absolutamente nada, que o deixe prever na obra publicada até então. A família do filósofo foi testemunha do inesperado. Mário fazia uma conferência, no tom meio literário, meio filosófico dos seus escritos usuais, quando de repente pediu desculpas ao auditório e se retirou, alegando que “tivera uma idéia” e precisava anotá-la urgentemente. A idéia era nada mais, nada menos que as teses numeradas destinadas a constituir o núcleo da Filosofia Concreta, por sua vez coroamento dos dez volumes iniciais da Enciclopédia, que viriam a ser escritos uns ao mesmo tempo, outros em seguida, mas que ali já estavam embutidos de algum modo. A Filosofia Concreta é construída geometricamente como uma seqüência de afirmações auto-evidentes e de conclusões exaustivamente fundadas nelas – uma ambiciosa e bem sucedida tentativa de descrever a estrutura geral da realidade tal como tem de ser concebida necessariamente para que as afirmações da ciência façam sentido.

Mário denomina a sua filosofia “positiva”, mas não no sentido comteano. Positividade (do verbo “pôr”) significa aí apenas “afirmação”. O objetivo da filosofia positiva de Mário Ferreira é buscar aquilo que legitimamente se pode afirmar sobre o conjunto da realidade à luz do que foi investigado pelos filósofos ao longo de vinte e quatro séculos. Por baixo das diferenças entre escolas e correntes de pensamento, Mário discerne uma infinidade de pontos de convergência onde todos estiveram de acordo, mesmo sem declará-lo, e ao mesmo tempo vai construindo e sintetizando os métodos de demonstração necessários a fundamentá-los sob todos os ângulos concebíveis.

Daí que a filosofia positiva seja também “concreta”. Um conhecimento concreto, enfatiza ele, é um conhecimento circular, que conexiona tudo quanto pertence ao objeto estudado, desde a sua definição geral até os fatores que determinam a sua entrada e saída da existência, a sua inserção em totalidades maiores, o seu posto na ordem dos conhecimentos, etc. Por isso é que à seqüência de demonstrações geométricas se articula um conjunto de investigações dialéticas, de modo que aquilo que foi obtido na esfera da alta abstração seja reencontrado no âmbito da experiência mais singular e imediata. A subida e descida entre os dois planos opera-se por meio da decadialética, que enfoca o seu objeto sob dez aspectos:

1. Campo sujeito-objeto. Todo e qualquer ser, seja físico, espiritual, existente, inexistente, hipotético, individual, universal, etc. é simultaneamente objeto e sujeito, o que é o mesmo que dizer – em termos que não são os usados pelo autor – receptor e emissor de informações. Se tomarmos o objeto mais alto e universal – Deus –, Ele é evidentemente sujeito, e só sujeito, ontologicamente: gerando todos os processos, não é objeto de nenhum. No entanto, para nós, é objeto dos nossos pensamentos. Deus, que ontologicamente é puro sujeito, pode ser objeto do ponto de vista cognitivo. No outro extremo, um objeto inerte, como uma pedra, parece ser puro objeto, sem nada de sujeito. No entanto, é óbvio que ela está em algum lugar e emite aos objetos circundantes alguma informação sobre a sua presença, por exemplo, o peso com que ela repousa sobre outra pedra. Com uma imensa gradação de diferenciações, cada ente pode ser precisamente descrito nas suas respectivas funções de sujeito e objeto. Conhecer um ente é, em primeiro lugar, saber a diferenciação e a articulação dessas funções. Alguns exercícios para o leitor se aquecer antes de entrar no estudo da obra de Mário Ferreira: (1) Diferencie os aspectos e ocasiões em que um fantasma é sujeito e objeto. (2) E uma idéia abstrata, quando é sujeito, quando é objeto? (3) E um personagem de ficção, como Dom Quixote?

2. Campo da atualidade e virtualidade. Dado um ente qualquer, pode-se distinguir entre o que ele é efetivamente num certo momento e aquilo em que ele pode (ou não) se transformar no instante seguinte. Alguns entes abstratos, como por exemplo a liberdade ou a justiça, podem se transformar nos seus contrários. Mas um gato não pode se transformar num antigato.

3. Distinção entre as virtualidades (possibilidades reais) e as possibilidades não-reais, ou meramente hipotéticas. Toda possibilidade, uma vez logicamente enunciada, pode ser concebida como real ou irreal. Só podemos obter essa gradação pelo conhecimento dialético que temos das potências do objeto.

4. Intensidade e extensidade. Mário toma esses termos emprestados do físico alemão Wilhelm Ostwald (1853-1932), separando aquilo que só pode variar em diferença de estados, como por exemplo o sentimento de temor ou a plenitude de significados de uma palavra, e aquilo que se pode medir por meio de unidades homogêneas, como por exemplo linhas e volumes.

5. Intensidade e extensidade nas atualizações. Quando os entes passam por mudanças, elas podem ser tanto de natureza intensiva quanto extensiva. A descrição precisa das mudanças exige a articulação dos dois pontos de vista.

6. Campo das oposições no sujeito: razão e intuição. O estudo de qualquer ente sob os cinco primeiros aspectos não pode ser feito só com base no que se sabe deles, mas tem de levar em conta a modalidade do seu conhecimento, especialmente a distinção entre os elementos racionais e intuitivos que entram em jogo.

7. Campo das oposições da razão: conhecimento e desconhecimento. Se a razão fornece o conhecimento do geral e a intuição o do particular, em ambos os casos há uma seleção: conhecer é também desconhecer. Todos os dualismos da razão – concreto-abstrato, objetividade-subjetividade, finito-infinito, etc. – procedem da articulação entre conhecer e desconhecer. Não se conhece um objeto enquanto não se sabe o que tem de ser desconhecido para que ele se torne conhecido.

8. Campo das atualizações e virtualizações racionais. A razão opera sobre o trabalho da intuição, atualizando ou virtualizando, isto é, trazendo para o primeiro plano ou relegando para um plano de fundo os vários aspectos do objeto percebido. Toda análise crítica de conceitos abstratos supõe uma clara consciência do que aí foi atualizado e virtualizado.

9. Campo das oposições da intuição. A mesma separação do atual e do virtual já acontece no nível da intuição, que é espontaneamente seletiva. Se, por exemplo, olhamos esta revista como uma singularidade, fazemos abstração dos demais exemplares da mesma tiragem. Tal como a razão, a intuição conhece e desconhece.

10. Campo do variante e do invariante. Não há fato absolutamente novo nem absolutamente idêntico a seus antecessores. Distinguir os vários graus de novidade e repetição é o décimo e último procedimento da decadialética.

Mário complementa o método com a pentadialética, uma distinção de cinco planos diferentes nos quais um ente ou fato pode ser examinado: como unidade, como parte de um todo do qual é elemento, como capítulo de uma série, como peça de um sistema (ou estrutura de tensões) e como parte do universo.

Nos dez primeiros volumes da Enciclopédia, Mário aplica esses métodos à resolução de vários problemas filosóficos divididos segundo a distinção tradicional entre as disciplinas que compõem a filosofia – lógica, ontologia, teoria do conhecimento, etc. –, compondo assim a armadura geral com que, na segunda série, se aprofundará no estudo pormenorizado de determinados temas singulares.

Aconteceu que, na elaboração dessa segunda série, ele se deteve mais demoradamente no estudo dos números em Platão e Pitágoras, o que acabou por determinar o upgrade espetacular que marca a segunda metanóia do filósofo e os dez volumes finais da Enciclopédia, tal como expliquei na introdução à Sabedoria das Leis Eternas. O livro Pitágoras e o Tema do Número, um dos mais importantes do autor, dá testemunho da mutação. O que chamou a atenção de Mário foi que, na tradição pitagórico-platônica, os números não eram encarados como meras quantidades, no sentido em que são usados nas medições, mas sim como formas, isto é, articulações lógicas de relações possíveis. O que Pitágoras queria dizer com sua famosa afirmação de que “tudo são números” não é que todas as qualidades diferenciadoras podiam se reduzir a quantidades, mas que as quantidades mesmas eram por assim dizer qualitativas: cada uma delas expressava um certo tipo de articulação de tensões cujo conjunto formava um objeto. Mas, se de fato é assim, conclui Mário, a seqüência dos números inteiros não é apenas uma contagem, mas uma série ordenada de categorias lógicas. Contar é, mesmo inconscientemente, galgar os degraus de uma compreensão progressiva da estrutura do real. Vejamos, só para exemplificar, o que acontece no trânsito do número um ao número cinco. Todo e qualquer objeto é necessariamente uma unidade. Ens et unum convertuntur, “o ser e a unidade são a mesma coisa”, dirá Duns Scot. Ao mesmo tempo, porém, esse objeto conterá em si alguma dualidade essencial. Mesmo a unidade simples, ou Deus, não escapa ao dualismo gnoseológico do conhecido e do desconhecido, já que aquilo que Ele conhece de si mesmo é desconhecido por nós. Ao mesmo tempo, os dois aspectos da dualidade têm de estar ligados entre si, o que exige a presença de um terceiro elemento, a relação. Mas a relação, ao articular os dois aspectos anteriores, estabelece entre eles uma proporção, ou quaternidade. A quaternidade, considerada como forma diferenciada do ente cuja unidade abstrata captamos no princípio, é por sua vez uma quinta forma. E assim por diante.

A mera contagem exprime, sinteticamente, o conjunto das determinações internas e externas que compõem qualquer objeto material ou espiritual, atual ou possível, real ou irreal. Os números são portanto “leis” que expressam a estrutura da realidade. O próprio Mário confessa não saber se essa sua versão muito pessoal do pitagorismo coincide materialmente com a filosofia do Pitágoras histórico. Seja uma descoberta ou uma redescoberta, a filosofia de Mário descerra diante dos nossos olhos, de maneira diferenciada e meticulosamente acabada, um edifício doutrinal inteiro que, em Pitágoras – e mesmo em Platão – estava apenas embutido de maneira compacta e obscura. Ao mesmo tempo, em A Sabedoria dos Princípios e demais volumes finais da Enciclopédia, ele dá ao seu próprio projeto filosófico um alcance incomparavelmente maior do que se poderia prever até mesmo pela magistral Filosofia Concreta. A esta altura, aquilo que começara como conjunto de regras metodológicas se transmuta num sistema completo de metafísica, a mathesis megiste ou “ensinamento supremo”, ultrapassando de muito a ambição originária da Enciclopédia e elevando a obra de Mário Ferreira ao estatuto de uma das mais altas realizações do gênio filosófico de todos os tempos.

Não tenho a menor dúvida de que, quando passar a atual fase de degradação intelectual e moral do país e for possível pensar numa reconstrução, essa obra, mais que qualquer outra, deve tornar-se o alicerce de uma nova cultura brasileira. A obra, em si, não precisa disso: ela sobreviverá muito bem quando a mera recordação da existência de algo chamado “Brasil” tiver desaparecido. O que está em jogo não é o futuro de Mário Ferreira dos Santos: é o futuro de um país que a ele não deu nada, nem mesmo um reconhecimento da boca para fora, mas ao qual ele pode dar uma nova vida no espírito.

Mais informações por Dartagnan da Silva Zanela em 04/01/2007:

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UM GIGANTE E SEU CENTENÁRIO

Em muitos momentos, sinceramente, envergonho-me de ser brasileiro, por ser portador de uma identidade vinculada a uma coletividade tão inócua que se ufana de seus festejos mundanos e de sua arte de empinar bolas com os pés com se isso fosse sinônimo de superioridade intelectual e moral. Alias, atualmente, nestas terras pindorâmicas, se auto-proclamar ignorante, tornou-se sinônimo de altivez e serenidade, tal o estado degradante que nossa sociedade chegou.

Entretanto, a Graça Divina nos faz lembrar que o Brasil e os brasileiros não são apenas essa massa degradada, que estas terras tiveram a grata alegria de parir e cevar almas como a de Matias Aires, Joaquim Nabuco, Farias Brito, Rui Barbosa, Gustavo Corção, Alceu Amoroso Lima, Gilberto Freire, Raymundo Faoro, Miguel Reale e, incluímos aqui, os nomes de alguns ainda vivos que estão a abrilhantar a nossa identidade nacional como José Osvaldo de Meira Penna, Olavo de Carvalho, José Murilo de Carvalho, Artur Gianetti da Fonseca, em muitos outros.

Mas, neste dia 03 de janeiro de 2007, sentimo-nos obrigados a render nossas homenagens ao filósofo Mário Ferreira dos Santos que, se vivo fosse, estaria completando cem anos de idade. Quando afirmamos filósofo, não estamos aqui homenageando um senhor que detinha um diploma de graduação em filosofia, mas sim, um homem que dedicou toda a sua vida a investigação de questões deste caráter. Estamos nos referindo a um homem que foi autor de aproximadamente setenta obras que foram publicadas de maneira independente através de sua editora, a Logos, e que nos legou aproximadamente trinta outras manuscritas. Detalhe: algumas destas obras foram publicadas com o uso de um mimeógrafo devido a falta de recursos para uma edição mais apropriada, porém, a falta de recursos nunca foi um motivo para aborrecer e desanimar o seu amor constante pela Verdade e pela Sabedoria.

Ferreira dos Santos, nos idos da década de 50 e 60 além de ministrar fabulosas aulas em auditórios e salas reservadas, também o fazia através do correio, através de cursos por correspondência. Além das obras de sua pena, ele também traduziu, comentou e publicou inúmeras obras clássicas para língua pátria e, destacamos aqui, a tradução singular da obra ?ASSIM FALOU ZARATUSTRA? de Friedrich Nietzsche, que era acompanhada de fartas notas de roda-pé que apresentavam uma análise simbólica da obra do poeta-filósofo alemão.

Poucas de suas obras são nos dias atuais republicadas e poucos são os que se dedicam a meditação de seus ensinamentos e, destes poucos, a maioria se encontra apartada a seara acadêmica que muito mais se preocupa com seus soldos do que com o que era objeto central da vida de Mário Ferreira dos Santos, que seria o estudo e o amor ao saber.

Tal era a sua dedicação que, a mestra da vida, a História, nos conta que este homem em seus afazeres diários (que além de tudo era empresário e advogava), sempre carregava no bolso de sua camisa uma pequena caderneta para anotar todas as idéias e impressões que lhe ocorressem no dia para, mais tarde, quando estivesse no aconchego de seu lar, pudesse ele refletir sobre elas e assim ordená-las de um modo singular.

Infelizmente, no centenário desta figura que elevou os estudos filosóficos em nossa nação, creio que pouco se dedicará ao estudo e reflexão de suas áureas laudas. Com certeza, muitos destes pusilânimes que se auto-proclamam intelectuais irão afirmar que se a sua obra está em ostracismo é porque ela nunca teve valor. Bem, de certo modo, sim, visto que o seu trabalho hercúleo frente ao que vemos hoje seria realmente pouco significante, do mesmo modo que é o primor do trabalho chama pouca a atenção um vagabundo desavergonhado.

Cremos que seria uma legítima prática sanitária para o espírito hodierno de nossa sociedade a leitura de obras como A invasão vertical dos Bárbaros, Filosofia Concreta (em 3 tomos), Tratado de Simbólica, Filosofia da Crise, Filosofia Concreta dos Valores, Filosofia e História da Cultura (em 3 tomos), Lógica e Dialética, O homem perante o infinito e Noologia Geral.

Podemos afirmar, sem medo de errar, que este senhor foi o grande educador filosófico de nossa Pátria e, como toda grande alma, foi pouco ouvido. Que não houve e que, demorará muito, infelizmente, para que haja outro homem que dedicasse a sua vida de tal forma ao magistério e a disseminação da cultura filosófica em nosso país, pois ele, Mário Ferreira dos Santos, fez tudo isso e muito mais, sem nunca pedir um tostão sequer aos cofres públicos. Bem ao contrário dos intelectuais da atualidade que nada seriam e nada fariam sem as gentilezas concedidas pelo Estadossauro.

Por isso, neste ano, vamos render a este filósofo a merecida homenagem que um homem com uma alma desta envergadura merece. Vamos estudar as suas obras, vamos refletir sobre suas idéias, ponderar sobre as suas análises e assim, somente assim, gritemos com a alma repleta de felicidade: Viva Mário Ferreira dos Santos! Ele está morto, mas sua obra e suas idéias vivem!

Mais informações por Carlos Vargas:

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O centenário de Mário Ferreira dos Santos: Um convite à filosofia, artigo de Carlos Vargas

O conjunto da sua obra é um grande convite para conhecer mais sobre o pensamento brasileiro


Carlos Vargas é mestrando em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Paraná, professor nas Faculdades Integradas Santa Cruz de Curitiba, mediador do Programa de Enriquecimento Instrumental (CDCP/ ICELP) e membro da Sociedade de Pesquisas & Estudos Qualitativos (SE&PQWink. Artigo enviado pelo autor ao “JC e-mail”:

"Estamos agora, depois de uma atomização especializadora constante, marchando para um novo período: o concrecionador” (Mário Ferreira dos Santos).

Neste dia 3 de janeiro de 2007, o Brasil celebra o centenário de nascimento de um dos seus maiores pensadores, o filósofo Mário Ferreira dos Santos. O valor da sua obra já foi avaliado pela Enciclopédia Filosófica do Centro di Studi Filosofici Gallarate, que lhe dedicou um verbete de página inteira (1).

A sua maior obra, a “Enciclopédia de ciências filosóficas e sociais”, que inclui 48 volumes (2), realizou o plano de expressar a grandiosidade de um pensamento que buscou a estrutura permanente e universal pressuposta em qualquer filosofia possível (3).

Nessa Enciclopédia, seus métodos filosóficos foram aplicados eficazmente em uma variedade de problemas que ainda interessam aos pesquisadores das mais diversas áreas, passando pela psicologia, sociologia, lógica, ética, retórica, ciências da natureza, estética, teoria do conhecimento, história, simbolismo, etc.

Assim, buscou dialeticamente uma unidade metodológica capaz de abranger qualquer disciplina filosófica sem filiar-se a nenhum “ismo”, apesar de ter recebido as influências mais diversas, de Marx a Lao Tsé, de Pitágoras a Nietzsche, de São Tomás a Proudhon, de Jung a Husserl.

Esta realidade ficou manifesto neste pensamento filosófico: “Não nos cabe mais filiarmo-nos a um ismo e, subordinarmo-nos a ele, mas realizar a concreção; ou seja, construir a visão concreta que reúna essas positividades, analogando-as com um nexo que justifique a sua realidade, não a sua exclusividade” (4).

Seus mais de cem livros tiveram um total estimado de centenas de milhares de exemplares vendidos, sendo que alguns foram reeditados mais de dez vezes, e podem ser encontrados nas bibliotecas universitárias de todo o Brasil, mas também em Portugal e Espanha.

O professor Stanilavs Ladusans coletou o depoimento dele no primeiro volume de “Rumos da filosofia atual no Brasil: em auto-retratos”. Sua obra aparece listada na “Bibliografia filosófica brasileira: período contemporâneo (1931-1977)” de Antonio Paim e foi comentada na Espanha (5) e reconhecida pelos estudiosos da filosofia pitagórica (6).

Entre essas pesquisas, a que mais merece ser destacada, por ser mais completa e mais profunda, foi a descoberta, por Olavo de Carvalho, de sentidos lógicos, noéticos e ontológicos mais profundos no pensamento filosófico ferreiriano (7).

Nas universidades brasileiras há um interesse crescente. Para 2007, estão sendo planejados alguns eventos e publicações em homenagem a este centenário, especialmente em setores da PUC-SP, Casper Líbero-SP, USC (Bauru), PUC-PR, Faculdades Interadas Santa Cruz de Curitiba, Unicampo-PR e UNILAGOS-PR (8).

Algumas editoras (Edusc, Ibrasa, Cone Sul) republicaram algumas de suas obras, mas neste ano do centenário de nascimento, espera-se novas edições. Além da Martins Fontes e da Tríade, que estão analisando o relançamento de suas obras, a Paulus confirmou a reedição de “Lógica e Dialética”.

E algum destaque também será dado ao livro inédito, “Encontro com a filosofia concreta”, sobre a relação entre filosofia e ciência, que será lançado pela Érealizações, acompanhado de uma pesquisa, feita pelo autor deste artigo, comparando a filosofia concreta de Ferreira dos Santos e a abordagem fenomenológica que Husserl tomou a partir dos problemas sobre lógica pura como doutrina da ciência levantados nos prolegômenos das “Investigações Lógicas” (9).

Quem possui interesse pela cultura brasileira em um sentido amplo, prezando seus aspectos objetivos, permanentes e universais, sentirá a necessidade de assimilar também essas valiosas contribuições filosóficas.

Nesse sentido, o conjunto da sua obra é um grande convite para conhecer mais sobre o pensamento brasileiro, especialmente para que se crie mais ainda, como ele mesmo recomendou, e para que o Brasil tenha uma cultura cada vez mais respeitada e valorizada, assumindo um papel relevante na história das nações: “Não somos um povo de incompetentes e incapazes... Também somos aptos a criar luminares. (...) Sem tomarmos consciência de nossas possibilidades, não poderemos fazer nada, e os que tomaram consciência de suas possibilidades, e empreenderam fazer alguma coisa, fizeram.” (10).

Esta homenagem breve pretende ser um convite à filosofia (11), finalizando-se por meio das palavras animadoras do próprio Mário Ferreira: “Schiller disse que a beleza da viagem estava na viagem e não na chegada. Sejamos esses viajantes incansáveis, anelantes de certeza. Não façamos das nossas impossibilidades a nossa angústia. Saibamos viver a beleza dos caminhos que percorremos e não interrompamos a viagem porque não sabemos onde iremos chegar. Talvez nos espere nas dobras do caminho, o imprevisto...” (12).

Notas:

(1) BERALDO, Carlo. Santos, Mário Ferreira dos: verbete da “Enciclopédia Filosófica”- Centro di Studi Filosofici di Gallarate. Firenze, G.C. Sansoni Editorem 1969.
(2) GALVÃO, Nadiejda et SANTOS, Yolanda. Monografia sobre Mário Ferreira dos Santos. São Paulo: s. ed., 2001. Por dentro das Relações Exteriores
(3) Esta observação se fundamenta em CARVALHO, Olavo de. Guia breve para o estudo da obra filosófica de Mário Ferreira dos Santos. In: SANTOS, Mário F. A sabedoria das leis eternas. São paulo: É Realizações, 2001b. 142p. Neste texto se encontra a análise filosófica mais completa sobre o conjunto da obra de Mário Ferreira dos Santos.
(4) SANTOS, Mário Ferreira. Análise de Temas Sociais: vol. 1. São Paulo: Logos, 1962.
(5) SOUZA, C. A. M., Mário Ferreira dos Santos y su filosofia concreta. Madrid: Revista Verbo, série XXX. Núm. 29-296, mayo-junio-julio 1991.
(6) FERNANDES, Paulo C. Homenagem ao filósofo Mário Ferreira dos Santos. Curitiba: A Lâmpada (órgão do Instituto Neo-Pitagórico), jan.-dez. 2004.
(7) CARVALHO, Olavo de. O futuro do pensamento brasileiro: estudos sobre o nosso lugar no mundo. 2a ed. Rio de Janeiro: Faculdade da Cidade, 1997. Pode-se estimar que a maioria dos atuais interessados na monumental obra ferreiriana descobriram-na pela divulgação do autor desse livro.
(8) Há também algum material disponível pela internet nos seguintes sites: http://www.marioferreira.cjb.net/,http:/...dos_Santos e http://www.academus.pro.br/ . Além de artigos interessantes citando Ferreira dos Santos em vários sites da internet, especialmente http://zanela.tk/ e http://www.olavodecarvalho.org/.
(9) O argumento fundamental de tal pesquisa foi extraído do próprio Mario Ferreira, que percebeu sua semelhança com Husserl,como ficou registrado em SANTOS, Mário Ferreira. Sobre psicologia. Transcrição de aula. São Paulo. 1967.
(10) SANTOS, Mário Ferreira.Filosofia da história e da cultura: III volume. São Paulo: Logos, 1962.
(11) SANTOS, Mário Ferreira.Convite à Filosofia. 6a ed. São Paulo: Logos, 1961.
(12) SANTOS, Mário Ferreira. Sabedoria do ser e do nada: volume I. São Paulo: Matese, 1968.

Lista de Obras do Mário Ferreira dos Santos:

  1. Filosofia e Cosmovisão;
  2. Lógica e Dialética;
  3. Psicologia;
  4. Teoria do Conhecimento;
  5. Tratado de Simbólica;
  6. Filosofia da Crise;
  7. O Homem Perante o Infinito;
  8. Noologia Geral;
  9. Filosofia Concreta
    Volume I,
    Volume II e
    Volume III;
  10. Métodos Lógicos e Dialéticos
    Volume I,
    Volume II, e
    Volume III;
  11. Filosofias da Afirmação e da Negação;
  12. Tratado de Economia
    Volume I e
    Volume II;
  13. Filosofia e História da Cultura
    Volume I
    Volume II e
    Volume III;
  14. Análise de Temas Sociais
    Volume I
    Volume II
    Volume III;
  15. O Problema Social;
  16. A Sabedoria da Unidade;
  17. A Sabedoria das Leis Eternas;
  18. A Sabedoria dos Príncipios;
  19. Aspectos dos Ciclos Culturais;
  20. Curso de Integração Pessoal;
  21. Curso de Oratória e Retórica
    Volume I eVolume II;
  22. Técnica do Discurso Moderno;
  23. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais;
  24. Erros na Filosofia da Natureza;
  25. Análise Dialética do Marxismo.
Esse tópico faz parte do projeto Segunda das Relíquias perdidas.
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